
A 26ª edição do Cine PE – Festival do Audiovisual começou nesta sexta-feira, 09/12, no Teatro do Parque, no Recife, em uma cerimônia apresentada pela atriz pernambucana Nínive Caldas. Considerado uma das maiores vitrines da produção audiovisual brasileira, o evento traz uma programação plural com diversidade de linguagens e narrativas.
A noite de abertura contou com uma homenagem ao cineasta Sergio Rezende, que recebeu o Calunga de Ouro, e com a projeção de Vermelho Monet, de Halder Gomes, primeiro filme da mostra competitiva de longas. Além disso, foi exibido, fora de competição, da Mostra Hors-Concours, o curta-metragem documental A Vida Secreta de Delly, do cineasta pernambucano Marlom Meirelles. Produto final de uma oficina do Cine PE, o filme conta a história de Edelfan Batista, que enfrentou o preconceito e o abandono antes de se tornar a voz dos catadores de Nova Vila Claudete, no Cabo de Santo Agostinho.
O curta-metragem, filmado ao longo de dois dias, descortina uma história real que dialoga com boa parcela da comunidade LGBTQIA+: “Essa história que vai ser contada aqui é a historia de uma personagem muito interessante”, disse Sandra Bertini, diretora geral do festival, no palco do Teatro do Parque. Ela também falou da oficina que rendeu o filme: “Eu encontrei no Complexo Industrial Portuário de Suape uma parceria muito forte para que a gente desenvolvesse essa oficina de documentário em duas comunidades do Cabo de Santo Agostinho: Massangana e Nova Vila Claudete. Tivemos aulas ministradas pelo professor Marlom Meirelles, que passou uma semana lecionando; depois, criamos um roteiro com os participantes da oficina e fomos filmar”.
Edelfan Batista, também conhecido como Delly, subiu ao palco para apresentar o documentário: “A existência desse filme significa muito para nós que somos da Associação de Catadores e Artesãos da Nova Vila Claudete. Eu sou um catador de material reciclável e através da minha história eu espero que todos acreditem que a existência e a significância de catadores na nossa sociedade é muito importante. Espero que vocês vejam e observem de uma maneira mais simples e mais amorosa essas pessoas que fazem com que nosso planeta se torne um mundo melhor para habitar”. E completou: “É muito importante para mim e para nossa associação essa visibilidade de todos que estão aqui e espero que enxerguem o real significado desse filme”.
No dia seguinte à exibição, Delly participou de um debate com o público e jornalistas, mediado pelo crítico Edu Fernandes, que lhe rendeu diversos elogios: “As travestis costumam ser tratadas como lixo, mas você foi no lixo para resgatar a sua dignidade”, disse o cineasta Luiz Carlos Lacerda. Sergio Rezende, Mariza Leão e Halder Gomes também elogiaram a obra.
Durante a conversa, Delly emocionou o público ao falar da sensação de ver sua história contada em um filme: “Tenho 35 anos de idade e eu nunca tinha ido ao cinema. Então, a primeira vez que eu entrei em uma sala de cinema eu me vi na tela. Foi muito forte pra mim. Foi relembrar todas aquelas histórias, mas agora com mais força. Eu chorei, mas eu chorei de alegria. Não como eu chorei de tristeza no dia da gravação. Depois de ver minha história sendo contada eu já não choro mais de tristeza ou de lembranças ruins”.
Delly apresenta o filme ao lado de alguns integrantes da equipe
No bate-papo, também falou sobre algumas inseguranças do passado: “Eu guardei Delly dentro daquele guarda-roupa porque eu tinha sofrido muito. Passei por várias situações que nunca tinha passado. Eu achava que era muito agressivo estar Delly, participar sendo Delly. Então, eu criei Dell, que acabou entrando na minha mente, dentro do meu corpo, pois você não controla seus pensamentos e nem quem você é intelectualmente. Eu nunca abri mão de ser Delly. Eu gosto de ser Delly, eu nasci Delly e vou morrer Delly. Ser Delly hoje é menos complicado do que antes”.
Delly também falou do processo de realização do documentário e do apoio que recebeu: “Pensei em desistir muitas vezes porque minha vida não era o que eu queria apresentar. Eu achava que essa vida não poderia ser mostrada porque me tiraria do eixo de formação no qual eu estava entrando. Mas, durante a gravação, eu tive muito apoio. O professor Marlom me ajudou muito. Ele é uma pessoa muito sensível que sabe lidar com as pessoas. Tive muito apoio de Sandra [Bertini] também”.
E continuou sobre as filmagens: “Passamos horas gravando e tivemos muitas pausas porque eu chorava muito, incontrolavelmente. A equipe de filmagem foi formada por pessoas da nossa convivência, catadores que participaram no som, na claquete. Todo mundo era amador, menos o professor Marlom”.
Durante o debate, Sandra Bertini fez uma declaração: “Eu fico muito feliz por estarmos aqui para conversar sobre o filme. Eu não imaginava que ia me deparar com uma história com tanta significância para mim. Marlom é incrivelmente sensível, uma pessoa que foi predestinada a fazer esse tipo de trabalho. Ele comanda a oficina Documentando, que já conta com mais de cem filmes realizados por pessoas sem experiência no audiovisual. O filme tem um diálogo muito importante e uma historia de vida também muito importante. Delly, você é uma pessoa que venceu e vai vencer ainda mais. Você agora é daqui pra frente”.
Ao final da conversa, Delly revelou: “Ninguém sabia dessa parte da minha historia, nem minha mãe que está aqui comigo. As pessoas me conheciam como Dell, uma pessoa com aparência feminina, mas não travestida de mulher. A filmagem foi muito forte e a única pessoa centrada que conseguia controlar aquele ambiente era o professor. Eu via as lágrimas nos olhos dele, mas ele se controlava. Foi muito impactante. Quando eu comecei a contar e queria parar, ele me falou uma frase que eu jamais vou esquecer: respire e olhe para você porque a sua vez chegou. Essa frase, desde o dia da oficina até hoje, fez com que eu tirasse Delly daquele guarda-roupa”.
O diretor Marlom Meirelles, que não conseguiu marcar presença no debate por estar envolvido em outro projeto, a quarta edição do Curta na Serra, festival de cinema que acontece em Serra Negra, Bezerros, agreste pernambucano, falou com o CINEVITOR por mensagem: “Eu me segurei diversas vezes para não chorar de tão profunda e impressionante que é essa história; com muitas situações envolvidas e desdobramentos. Quando começamos a compartilhar as ideias, eu fui descobrindo mais sobre a vida de Delly. É uma pessoa fantástica. E foi também muito importante criar uma conexão com a comunidade e ver que todos esses agentes locais acabaram sendo protagonistas dessa história”.
A Vida Secreta de Delly já está disponível no site oficial da Oficina Documentando: clique aqui e assista.
*O CINEVITOR está no Recife e você acompanha a cobertura do evento por aqui, pelo canal do YouTube e pelas redes sociais: Twitter, Facebook e Instagram.
Fotos: Felipe Souto Maior.