Entrevista: Gustavo Jahn e Melissa Dullius falam sobre Oráculo, exibido na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes

por: Cinevitor

oraculotiradentesentrevista1Filmografia dedicada ao cinema de experimentação.

Dirigido por Melissa Dullius e Gustavo Jahn, o longa catarinense Oráculo integra a Mostra Aurora da 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, que conta com a curadoria de Francis Vogner dos Reis e Lila Foster.

Os sete filmes que compõem a Aurora marcam a virada de um período paradigmático. Esses são os primeiros filmes brasileiros lançados em um ano que, para além de todo o desmonte do país que segue em curso, está marcado pela dúvida, pela morte, pela melancolia, mas também por um desejo de mudança e liberdade que se torna mais intenso.

Na trama de Oráculo, os espaços são seis: um rochedo, uma montanha, a areia desenhada pelas ondas, o quebra-mar de uma praia do outro lado do oceano, a passarela sob uma ponte que liga uma ilha ao continente, o quarto de uma adolescente. Personagens são três: um homem que está preso num ciclo de vida e morte, um segundo que revisita um lugar onde uma transformação irreversível aconteceu e uma jovem que está iniciando sua vida de artista. Oráculo situa-se entre experimento, método e dispositivo, e convida à contemplação. Particular em sua forma e ritmo, é universal nas lembranças que faz ecoar, comuns a todas as pessoas: família; começos, fins e recomeços; dores e traumas, e desejo intenso de vida e de sentido.

Para falar mais sobre o filme, entrevistamos os cineastas Gustavo Jahn e Melissa Dullius por e-mail. Confira:

O cinema experimental propõe um olhar provocador ao espectador colocando-o como testemunha daquela obra. Em Oráculo, por exemplo, observamos aqueles corpos em movimento em planos sequências que mostram o deslocamento deles naquele espaço, trazendo uma reflexão sobre como ocupam e preenchem os lugares vazios; seja de dentro pra fora ou de fora pra dentro (entre dores, traumas, desejos). Como surgiu a ideia de unir esses espaços e personagens em um filme?

Oráculo é um filme que parte de um dispositivo, criando ilhas ficcionais que cada personagem habita. Cada ilha corresponde a um rolo de película 16mm com 120 metros de comprimento e aproximadamente 11 minutos de duração. Dentro de cada plano, uma ação se desenrola, do ponto de partida ao de chegada, primeiro o momento entre a câmera começar a rodar até o rolo terminar, depois afinados na montagem pelos pontos de corte. Os espaços e os personagens escolhidos são encontros, ou melhor, reencontros, são relações antigas que se renovaram no momento da filmagem, no compromisso de fazer acontecer a tomada única. Entre a câmera e as personagens, o elo é esse intervalo, o tempo a preencher, e o espaço a ocupar ou percorrer. A união que consolida o filme se dá em dois movimentos. De nossa parte, pela montagem, na escolha da ordem em que os planos se sucedem, e pela parte d*s espectador*s, nos processos mentais e afetivos se desenvolvem durante a experiência de assistir ao filme.

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As locações são fundamentais em Oráculo, já que aparecem também como personagens. Seja a ponte no início, a praia, um quarto, um rochedo, uma montanha, uma passarela que liga uma ilha ao continente. Como foi a escolha desses lugares e de que maneira eles colaboram para o desenrolar de cada trama particular?

Os lugares em Oráculo são espaços que conhecemos bem, com os quais temos familiaridade e que despertam em nós um sentimento de passado, ao mesmo tempo melancólico e reconfortante. A prainha onde encontra a rocha na primeira cena é logo atrás da casa onde Gustavo cresceu, e lá já rodamos cenas de ao menos 3 outros filmes: Éternau (2006), Filme de Pedra (trabalho em progresso desde 2012) e Passeio Noturno (2015). A ponte velha, que aparece no primeiro plano, onde entram os créditos, é a chamada ponte velha cartão postal da cidade [Ponte Hercílio Luz, em Florianópolis]. O que interessou ali foi o ângulo da qual foi filmada, do continente para a ilha, num recanto onde uma antiga cidade parece ainda respirar, no morro, nas árvores, nas casas e vielas que habitam a cabeceira da ponte do lado de cá. A passarela vai um pouco pelo mesmo caminho, a ligação entre a ilha e o continente, possível de fazer a pé, com o mar batendo lá embaixo, o vento, a sensação de começar um caminho em que não se pode voltar, cada vez que cruza-se a passarela. São sensações que vibram fundo na gente. O quarto foi uma escolha da Alice, que quando perguntada onde queria filmar, respondeu: meu quarto é o meu lugar preferido no mundo.

De certa forma, os personagens vieram antes do espaço e por vezes indicaram o espaço, como no caso da Alice, ou do Fernando, que no texto em off sugeriu o caminho pela passarela da ponte, nos levando a filmar lá. Ou ainda a Luana, que aparece na cena em Barcelona, junto com a Alice, e por estarem lá, acabaram levando o filme pra lá também. Ainda assim, os personagens só existem nesses espaços, são os espaços que definem as possibilidades de existir, enquanto gestos, ação. O drama da primeira cena se resume a descer de uma rocha, é o espaço que o define. Então os espaços e os personagens são indissociáveis. Cada cena é como uma ilha, e o que liga as ilhas, o mar onde flutuam, é o tempo. A montanha está ali para afirmar isso, nos parece, deixando transparecer uma premissa, que é bem simples e há muito tempo sabida, que tudo está ligado e compartilha da mesma substância.

Como aconteceu a escolha do elenco e como funcionou o processo com eles desde a construção dos personagens até o momento das filmagens?

O elenco é formado por figuras em sua maioria ligadas às artes, principalmente ao teatro, com quem compartilhamos trajetórias e trocamos há bastante tempo. O Juarez Nunes, que aparece em duas cenas, Gustavo conheceu em 1998 na Udesc [Universidade do Estado de Santa Catarina], no curso de Artes Cênicas. Desde então, Juarez atuou em seis filmes que fizemos, começando em 2002. A sua presença em cena e a sua visão do ator como corpo performático nos influenciaram desde o princípio. Luana Raiter é da mesma geração, estudou teatro também na Udesc e forma o núcleo do ERRO Grupo, com Pedro Bennaton. São os pais de Alice Bennaton, que faz a sua estreia no cinema. Aline Maya, que também vem dessa geração, que estudou teatro na Udesc, entrou no projeto através de Pedro MC, também parceiro de longa data. A exceção talvez seria o Fernando, que não é ator e não trabalha no campo das artes, e é pai do Gustavo. Ainda assim, sobre sua cena e jeito de caminhar um amigo comentou: é o embaixador da poesia! Esse título nos agradou.

Então tem uma familiaridade muito grande entre esse grupo, e uma confiança também, baseada no respeito e admiração mútua.

O trabalho com o elenco foi nessa linha, como rodamos cada cena apenas uma vez, precisávamos confiar uns nos outros. O método era claro, a ação precisava preencher o tempo de um rolo de 122m de película 16mm, que dá aproximadamente 11 minutos. Dentro desse limite, marcamos alguns pontos, onde a ação começava, depois o meio, e onde tínhamos que estar antes que o rolo acabasse. Tudo muito simples, trabalhando com precisão mas aceitando o inesperado. Dentro dessa propostas, os atores, que são mais performers no filme, tiveram o espaço para estar presentes e agirem, para acontecer através dos seus gestos e ações.

Os personagens, antes dos atores eram ideias vagas. Foi mesmo a presença, repertório pessoal, experiência e trajetória de cada um que encarnou o/a personagem, os/as pôs de pé, e  fez viver e caminhar. É, como o Juarez bem coloca, um trabalho em camadas, alguém sendo um personagem sendo a si mesmo.

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Depois de uma vasta carreira com curtas e médias, e com o longa Muito Romântico, temos Oráculo na Mostra Aurora da 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes. Como é fazer parte dessa seleção tão aguardada pelos espectadores/cinéfilos/críticos, ainda mais em uma edição completamente diferente e com maior abrangência de público por conta do formato on-line?

A produção de discurso sobre os filmes e seus contextos, com a cobertura abrangente e dedicada d*s crític*s, bem como as reações do público, sejam colegas realizador*s, colaborador*s, velh*s amigos ou gente que nos assiste pela primeira vez, chegam de maneira muito diferente do que se estivéssemos em um mesmo ambiente. Mas de jeito nenhum menos intensa. Essas trocas nos entusiasmam, ensinam e fortalecem. É ótimo sentir o filme nascendo em terreno tão fértil. Na nossa cabeça, Oráculo iria estrear em uma sala de cinema. Isso na era pré-pandemia, é claro. Com seus planos longos, contemplativos, seu tempo estendido, Oráculo é um desafio, de certa maneira. Demanda a concentração que a sala de cinema oferece.

Mas nunca sabemos tão bem o que um filme é até ele começar a ser exibido e entrar em contato com o público, é aí que ele ganha vida. A situação hoje é de isolamento, é de distância, de acesso remoto. Então é isso e pronto. Assim se veem filmes agora, assim estreiam filmes agora. É uma alegria integrar o festival de 2021. Já participamos de edições anteriores do festival, mas nunca estivemos presentes, por morarmos no exterior e o festival não ter ainda coincidido com uma estada nossa no Brasil.

Para nós, essa estreia é também um modo de agregar ao contexto brasileiro atual, um gesto cuja intenção é injetar poesia na dureza cotidiana. E há aspectos decididamente positivos, como uma acessibilidade virtualmente maior do que se as exibições estivessem restritas ao âmbito dos festivais presenciais. Viva Tiradentes!

Entrevista e edição: Vitor Búrigo
Fotos: Divulgação/Distruktur.

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