Entrevista: cineasta Dea Ferraz fala sobre Agora, exibido no 9º Olhar de Cinema

por: Cinevitor

agoradeaferrazolhardecinemaAgora: único longa pernambucano na programação do festival.

Exibido na mostra Novos Olhares da 9ª edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, Agora, dirigido pela cineasta pernambucana Dea Ferraz, foi rodado com o apoio e a energia de parceiros que acreditam no cinema brasileiro, sem verba de edital algum. Em um país que extingue as janelas de financiamento para a cultura, o filme é, também, o testemunho da arte como resistência.

Depois das eleições de 2018, com a vitória de um presidente de extrema direita, declaradamente racista, misógino e LGBTQfóbico, a cineasta sentiu o ímpeto de registrar o incômodo que a atravessava. Já durante a campanha, o candidato apresentara sua agenda de desmonte para políticas públicas desenhadas nas últimas décadas. A partir daí, Dea convida artistas ativistas para um mergulho corporal em uma caixa cênica, numa tentativa de resposta à agonia e, também, em mais uma investigação fílmica a explorar os limites da linguagem cinematográfica; vide suas obras anteriores, como Câmara de Espelhos (2016), Modo de Produção (2017) e Mateus (2019).

Atrizes, músicos, poetas, bailarinos, corpos negros, corpos brancos, pessoas trans, gente jovem, gente mais velha: a partir da individualidade de cada uma e cada um, Agora fabrica um tecido social e político, uma bandeira deflagrada em composição humana com a qual é possível indagar: qual o gesto possível de um tempo como esse? Passado, presente e futuro, portanto, flutuam e se fundem no longa. Ao forjar uma temporalidade própria, alinhavando sensações íntimas a um turbulento horizonte político no país (seja no pós-eleição de 2018, seja durante a pandemia de 2020), o documentário sublinha a importância do cinema como ferramenta de reflexão.

Para falar mais sobre Agora, entrevistamos a diretora Dea Ferraz por e-mail. Confira:

O filme foi realizado em 2018, depois das eleições presidenciais com a vitória de um candidato de extrema direita, machista, homofóbico e preconceituoso. Hoje, dois anos depois, o cenário artístico brasileiro segue ameaçado e sem perspectiva de melhora. Como você enxerga seu filme nos dias de hoje e de que maneira ele pode reverberar no público?

O filme nasce naquele momento de país e como resultado de algumas angústias sobre a imagem, que, para mim parecia perder o seu potencial de liberdade, e surge também a partir de um desejo de registrar corpos em conexão com aquele tempo. Artistas que têm na arte suas formas de vida e que sempre se colocaram em oposição a qualquer tipo de projeto fascista. O que essas pessoas estariam sentindo? E o que seus corpos poderiam nos dizer? Não me interessava tanto acionar a racionalidade dos discursos da palavra, porque naquele momento as palavras pareciam esvaziadas. Não conseguíamos dialogar na diferença. Acho que ainda não conseguimos. Então, a minha questão era falar com o corpo. Acionar o corpo como portal que se abre ao tempo externo e interno, coletivo e pessoal. O corpo como presença a ser resgatada no mundo. Porque, em certa medida, sinto que nossos corpos estão adormecidos e o que o filme tenta fazer é justamente acionar outras dimensões de nossas sensibilidades. Os gestos que surgem naqueles corpos, naquele momento, são gestos que nos remetem a história da humanidade. Gestos carregados de sentimentos que reconhecemos e que carregamos em nós. Se, como sugerem algumas cosmologias africanas e indígenas, observarmos o tempo como uma espiral, entendemos que esses gestos vão e voltam em nós mesmos, reatualizando quem somos e de onde viemos. Por isso, pra mim, o filme, apesar de ser um registro daqueles corpos naquele tempo histórico, ele se atualiza a cada ‘agora’, a cada exibição, diante de quem o assiste. No encontro. Difícil imaginar como o filme vai reverberar nas pessoas. A gente nunca sabe ao certo e isso é o que torna a arte tão importante e tão livre. Deixar que cada um sinta o que vê, em conexão com o que carrega dentro de si. A gente não controla e nem pode prever, mas o meu desejo é de que as pessoas, através do filme, acionem seus próprios corpos, ou, como diz Suely Rolnik, que a arte seja capaz de acordar nosso corpo vibrátil, esse que não enxerga só com o olhos, mas com todos os sentidos. Porque eu acredito que acordar nosso corpo é acordar uma dimensão de nossa existência imprescindível para as transformações que tanto desejamos.

Como você chegou nesse grupo de artistas para o filme? Como foi a pesquisa e a escolha desses personagens?

Depois das eleições, naquele limbo entre a vitória desse projeto de desmonte do Brasil e sua posse, eu pensei que não voltaria a filmar tão cedo. Porque, de fato, entrei em crise com a imagem, suas potências artísticas e libertárias. No entanto, um dia, ao me levantar da cama, bem no meio desse gesto, uma imagem se desprendeu do meu corpo e era uma imagem muito simples: uma mulher, numa caixa, tentando me dizer o que sentia, utilizando apenas o seu corpo. É muito simbólico, pra mim, que tenha sido uma imagem que nasce do gesto e isso já me disse muito do que gostaria de fazer. Um corpo em improviso, acionando seus sentimentos a partir de uma provocação muito simples, mas não por isso fácil. O dispositivo, pra mim, já sinalizava um recorte, pois acionar o corpo em presença pede pessoas que já conheçam caminhos internos para isso. Convidei Bruna Leite, produtora de elenco, parceira e companheira de militância, para fazer a pesquisa e, naquele momento, tudo que eu sabia era que gostaria de construir um corpo coletivo composto por pessoas que fossem artistas ativistas, ou seja, pessoas que têm na arte suas formas de existência, pessoas que unificam uma ideia de corpo/existência/arte. E Bruna, num trabalho primoroso, me trouxe os treze nomes que compõem essa constelação. O mais incrível disso é que são artistas muito potentes, com suas agendas e compromissos, e que naquele momento toparam sem titubear. O filme parecia estar marcado antes mesmo da ideia. As agendas se encontraram e em 45 dias conseguimos pré produzir e filmar o longa.

deaferrazagoraA cineasta pergunta: no Brasil de hoje, qual o gesto possível do agora?

A reação de cada corpo apresentada no filme diz muito sobre aquela pessoa, naquele lugar vazio e que realiza sua performance diante do questionamento sobre como é esse corpo e onde ele queria estar. Com isso, as apresentações se tornam muito pessoais e potentes. Como aconteceu a preparação de elenco? Os artistas também contribuíram com outras ideias além de suas performances?

Quando começamos a entender o dispositivo e os desejos que nos conduziam, percebemos que precisávamos criar um ambiente acolhedor e amoroso para receber esses artistas. Tanto do ponto de vista da produção, quanto da técnica. No entanto, mais do que isso, era preciso pensar como ajudar essas pessoas a se conectarem consigo, com a caixa, com o país, tudo em pouco tempo, já que tínhamos, entre chegada, preparação e filmagem, uma média de 3h com cada artista. Eu já tinha trabalhado em duas ocasiões com Livia Falcão e Silvia Góes, que além de irmãs, são artistas incríveis e também terapeutas da alma e do corpo. Já havíamos experimentado alguns caminhos tendo em vista essa construção de presença, então pra mim foi como uma continuidade, não tinha como fazer esse filme se não fosse com elas ao lado. O trabalho que elas fazem, na verdade, pra mim, nem sei se a gente pode chamar de ‘preparação de elenco’. Livia deixa sempre isso muito claro. Porque não tinham personagens a serem construídos, não tinha narrativa a ser pesquisada, o desejo que havia estava mais próximo de uma desconstrução a ser empreendida. Então, do ponto de vista mais prático, elas trabalhavam com as pessoas durante no máximo 1h e depois a equipe entrava na caixa pra filmar, numa tentativa de não quebrar a conexão estabelecida. Eu acho que só Silvia e Livia podem falar dos caminhos internos que elas empreenderam para o filme, de minha parte, o que posso dizer é que quando eu entrava na caixa já havia um campo estabelecido e os corpos pareciam abertos para o salto. Foi muito intensa a experiência. Cada pessoa um mundo. Cada pessoa muitas pessoas, porque eles e elas pareciam exceder quem eram. É claro que são artistas com bagagem e conhecimento dos mecanismos pessoais que dispõem para acionar seus corpos em criação e improviso, mas o trabalho de Livia e Silvia foi imprescindível, para que houvesse entrega, amor e confiança. Para que houvesse, inclusive, a possibilidade de desconstrução desses caminhos conhecidos. Abertura e salto.

Cada artista expõe seu sentimento de uma maneira; seja em uma performance musical, em um desenho, em gargalhadas ou lágrimas, na dança, em textos. Fato é que a arte está presente nesses personagens e, com ela, é possível perceber uma forte conexão entre corpo, mente e indivíduo. Hoje, já com o filme finalizado e com esses discursos apresentados ao público, você observa sua obra como uma forma de registro de um momento sombrio do nosso país? E você acredita que essa proposta narrativa (de um lugar vazio e liberdade de expressão) vista no filme também foi importante e necessária para esses artistas?

Sim, eu acho que é o registro de um tempo específico, mas também acho que o ultrapassa. Como disse antes, acho que os gestos empreendidos são gestos carregados de muitos tempos e por isso não se fixam. Pra mim, a ideia da caixa – esse espaço vazio e livre, por que descontextualizado de qualquer pressuposto – tem a ver com minha pesquisa sobre a linguagem cinematográfica. Diz de um desejo de quebra do simulacro, de uma performatividade assumida, de uma quebra da 4a parede, de uma espacialidade que ao mesmo tempo que é circunscrita e também aberta e cheia de preenchimentos. Não saberia dizer se isso foi importante para as pessoas que improvisaram. Talvez só elas possam falar sobre isso. O que sei é que muitas, ao final, usavam palavras como cura, catarse, liberação. E naquele momento de país que vivíamos poder experimentar todas essas sensações dentro dessa caixa e juntes, foi transformador. Pra mim, foi um processo de muitas curas, de reativação de uma certa crença em nós e na arte. Um retorno à crença na imagem, essa que cria um espaço de movência, como diz Marie-José Mondzain, por onde o espectador pode imaginar, criar, fabular e completar o que vê com sua liberdade.

*O filme reprisa na terça-feira, 13/10, na programação do Olhar de Cinema.

Entrevista e edição: Vitor Búrigo
Fotos: Divulgação/Cecília da Fonte

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